Estava sentado a escrever um diário clínico e amaldiçoar o teclado (que exige uma força descomunal na letra R). A enfermeira abre a porta do gabinete de repente:
– Dr. tem de vir à cama X! É urgente!
Fico colado à cadeira. Tento ganhar tempo e pergunto:
– O que se passa?
A enfermeira insiste: – Tem de vir!
Levanto-me e sinto o coração a acelerar. Sou o único médico numa enfermaria com 24 camas. E tive a consciência, que pela primeira vez, teria de resolver sozinho o quer que fosse.
Percorro o caminho para o quarto a tentar prever o que me espera. Chego e vejo a senhora de olhos abertos e boca aberta. Mas, estranhamente, não está a respirar. A senhora faleceu.
Apesar de nunca a ter observado, conheço grande parte da sua história. Todos os dias se discutem todos os doentes da equipa. Sei que o desfecho era mais ou menos esperado. E que que havia uma decisão para não iniciar as manobras de reanimação.
Encosto o estetoscópio e oiço batimentos cardíacos. Ficou confuso. Mas depois percebo que estou a sentir a minha frequência cardíaca. Acelerada. Penso se isto será uma partida. Que a doente vai recomeçar a respirar a qualquer momento! Recordo-me vagamente das aulas de Medicina Legal. Olho para o relógio, faço as manobras que me lembro. O mais desconcertante é o silêncio do lado esquerdo do tórax. De forma irracional, continuo a achar que a doente vai recuperar.
Chega a ajuda mais sénior. Pergunta-me se vi as horas e o que fiz para verificar. Esqueci-me de algumas, mas prontamente me explica e exemplifica as outras.
Fico a ouvir a chamada. Com uma voz calma e empática, pergunta se o familiar pode falar. Se está a conduzir ou a fazer alguma coisa. Se pode parar e sentar-se num sítio mais calmo. E diz a frase. Consigo ouvir o familiar a chorar. Sei perfeitamente o que está a sentir. O embate. A angústia. A incredulidade. Emociono-me.
Recordo-me da chamada que recebi quando o meu pai faleceu. Demorou exactamente 17 segundos. Não houve empatia, nem conforto. Apenas uma informação.
A chamada prolonga-se por mais uns minutos. A colega quase sempre em silêncio. Deixa o familiar chorar. Procura dar o conforto possível, fala de forma calma e sem pressa para desligar a chamada.
Para ser Médico não bastam os livros. Dependemos muito dos nossos pares e temos de passar por certos rituais. Sempre os mais experientes a ensinar os que agora chegaram, que um dia ensinarão os que estão agora nas cadeiras da faculdade.
Esta cadeia está cada vez mais frágil e qualquer dia deixará de existir. Não haverá ninguém que ensine os recém chegados. Perder-se-ão dezenas de anos de conhecimentos e de experiência. Para sempre.
E quem fica a perder? Todos. Sobretudo as futuras gerações.